Quem sou eu

Mericó é uma pequenina cidade atemporal, fora dos mapas, dos livros e das estatísticas do IBGE, que vem atravessando os séculos. Hoje, por necessidade, ela se permite ser tocada por mãos estranhas, desde que estas mãos cuidem para que não morram as suas tradições, as suas histórias e, sobretudo, a memória da sua gente humilde e pacata. Assim fazendo, acredita que está contribuindo para a memória de todas as cidades que são ou, um dia, foram iguais a ela. Se você tem alguma alguma memória que possa contribuir nesse sentido, colabore. São coisas simples, assim como "Tomar Q-suco de morango gelado em uma garrafa de laranjada, com pão doce, na bodega da esquina..."

25 de junho de 2011

AMOR EM TEMPOS DE SECA

Seca de setenta. Aquele foi um tempo difícil para Mericó. Os derredores da vila transformaram-se num vasto tapete acinzentado de onde sobressaíam-se os esqueletos das juremas em estado de profunda hibernação.
As ruelas envelhecidas cobriram-se da poeira vermelha sacudida pelos constantes redemoinhos. As calçadas, no repouso do meio-dia, enchiam-se de homens, maltrapilhos, avermelhados de poeira fazendo a sesta, jogando o doze, ou pitando um pé-de-burro para enganar a fome.
O quadro mais desolador desenhava-se por volta da meia-noite da sexta-feira quando, rodeando o matadouro, uma fila de mulheres, enroladas em lençóis esfarrapados, tiritavam de frio, a espera da matança dos bois. Com uma tigela ou uma lata de óleo solevante apertada entres as mãos enrijecidas, esperavam colher um pouco do sangue dos animais abatidos. Em tempos passados, a simples idéia de comer sangue de boi seria motivo de asco, até ente os mais miseráveis de Mericó, mas a fome falara mais alto e era melhor uma farofa de sangue para misturar com o bugô e o feijão duro do governo, do que nada.
E foi nesse tempo, numa leva de cassacos vindos das bandas do Brejo, que Zé Amaro chegou em Mericó. Vinte e poucos anos, alto, porte atlético moldado pelo longo e constante uso da picareta, pele avermelhada, cabelo afogueado. Tinha uma vivacidade e um bom humor à prova de qualquer seca. Em poucos dias tornou-se amigo de todos da frente de trabalho e não demorou muito para conquistar os moradores, e até as autoridades, do vilarejo: o prefeito e o cabo da polícia.
A fila do matadouro não era mais a mesma depois que ele passou a freqüentá-la. E estava aí mais uma das suas qualidades: Sensibilizado com a situação de Dona Santinha, doente, com uma meia-dúzia de filhos pequenos e o marido trabalhando no Sul, toda sexta-feira ele pegava uma porção do sangue para ela.
Conversar e fazer graça eram o seu ponto forte. E se tinha uma bicadinha de brejeira, aí era que a língua soltava-se à vontade. Nunca estava só. Sempre que chegava a algum lugar, os admiradores da sua prosa aproximavam-se. E, assim, rapidamente ficou-se sabendo da sua vida: órfão de pai e mãe, com uma irmã moça e quatro irmãos menores com os quais labutava na terra para garantir o sustento. Em tempo de seca, os menores ficavam com a irmã e ele ganhava a vida mundo afora.
Quatro meses em Mericó e não tinha uma pessoa da vila ou redondezas que não o conhecesse e lhe guardasse estima, exceto um ou outro que, movido pela inveja, procurava levantar dúvidas em torno da sua pessoa, com insinuações do tipo:
- Sei não. Esse povo que aparece assim, do oco da pelada, eu é que não confio nessa gente...
Além de manusear muito bem a picareta, a foice e a enxada, Zé Amaro, mesmo de forma rudimentar, sabia de muitas outras cosias: andou consertando uns rádios, cantava uma meia dúzia de modas, acompanhado por Antoniano ao violão e chegou até a consertar o trator da prefeitura.  Dizia que aprendeu essas coisas nas suas andanças pelo Goiás.
 Mas, ao aproximar-se o quinto mês da sua estadia em Mericó, foi ele perdendo gradativamente a vivacidade, falando cada vez menos e com o olhar cada vez mais distante. Quando indagado, recobrava de maneira forçada a naturalidade, brincava, passava a mão na cabeça dos camaradas de labuta e dizia:
- Homem, tô só remoendo por aqui umas coisinhas... Tem nada errado não, cabroeira. Bora trabalhar que o governo ta pagando! E se parar, as juntas enferrujam!
E assim, continuava trabalhando, brincando, assobiando, mas, todos percebiam que ele estava escondendo alguma coisa, pois, aos poucos, ia murchando, calando, até cair naquela melancolia. Parecia  pensar em algo muito distante e muito bom, pois havia uma leveza e até um sorriso escondido na sua tristeza. Semanas passaram-se sem que seu humor voltasse ao normal. Já estavam até acostumados com o seu novo jeito de ser. Afinal, continuava sendo o amigo de todos: prestativo, servidor, caridoso, conselheiro... Apenas falava pouco e parecia viver em um mundo particular inacessível aos demais. 
Mas naquela sexta-feira, ele não apareceu no matadouro para apanhar o sangue para Dona Santinha. Todos estranharam, sentindo sua falta, pois, mesmo meio cabisbaixo, ele com sua espirituosidade fazia o tempo passar mais rápido naquela fila de miséria, frio e constrangimento. E, como era de se esperar, ainda tinham umas mocinhas casadeiras que andavam suspirando às escondidas por sua causa. Aquela foi uma madrugada longa e cheia de especulações:
- Será que o bichinho está doente? No meio daquele bocado de homem, não tem nem que lhe faça um chá...
- Comadre Joana, tá nada! Acho que ele foi pro Brejo, visitar os irmãos...
- Sei não! Sempre tive um pé atrás com aquele sujeito...
- Compadre João, parece que o senhor tem é inveja e ciúme do homem...
- Inveja, comadre? Só se for!... Um pé rapado daquele, mais pobre do que eu... Só se for!
O sol mal apareceu no horizonte e na fila de homens, mulheres e meninos com latas para apanhar água na cisterna pública, percebia-se, de longe, que algo não estava normal: O cansaço, a sonolência e a impaciência com a espera do carro d´água que ainda não chegara deram lugar a um burburinho com uns  se virando, outros gesticulando, outros  meneando a cabeça em sinal de descrença, desaprovação...
- Acredito não, comadre Severina! Isso é verdade mesmo?
 - Pois, pode acreditar, minha filha... Foi isso mesmo: O cabra anoiteceu e não amanheceu e ainda carregou a mulher do prefeito.
                                                                                                                              Aldenir Dantas

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