Quem sou eu

Mericó é uma pequenina cidade atemporal, fora dos mapas, dos livros e das estatísticas do IBGE, que vem atravessando os séculos. Hoje, por necessidade, ela se permite ser tocada por mãos estranhas, desde que estas mãos cuidem para que não morram as suas tradições, as suas histórias e, sobretudo, a memória da sua gente humilde e pacata. Assim fazendo, acredita que está contribuindo para a memória de todas as cidades que são ou, um dia, foram iguais a ela. Se você tem alguma alguma memória que possa contribuir nesse sentido, colabore. São coisas simples, assim como "Tomar Q-suco de morango gelado em uma garrafa de laranjada, com pão doce, na bodega da esquina..."

28 de junho de 2011

            DONA JULIETA
           
Dona Julieta era uma mulher muito respeitada em Mericó. Ainda jovem ficou viúva, com três filhos para criar, mas trabalhou por dois homens sem jamais lhes deixar faltar o sustento e ainda lhes deu, como pobre, uma boa educação. Eram já três rapazotes educados, obedientes, trabalhadores e que muito ajudavam a mãe na labuta diária.
            Era ela quem abastecia as bodegas, a cantina da escola, o mercado de Mericó e até as vizinhanças com solda preta, sequilho, puxa-puxa, beira seca, raiva, doce-de-coco, enfim, tudo que naqueles tempos se chamava de vendagens.
            Baixinha, forte como um jogador de futebol, meio avermelhada, voz estridente, sempre com uma resposta na ponta da língua, sem disposição para conversa comprida, sempre ligeira e com um buço aparente, principalmente, por estar quase sempre suada. Quando numa discussão acalorada em torno de uma transação comercial com um cliente ou fornecedor, levava a melhor, o que sempre acontecia, era comum o vencido sair resmungando às escondidas o velho ditado:
- Com mulher de bigode; nem o diabo pode!          
            E com Dona Julieta, a coisa era assim mesmo. Para defender a prole e ganhar o pão de cada dia ela não media esforços, sendo comum vê-la comprando goma pela casas de farinha da região, carregando lenha para alimentar o forno, trabalhando e botando os meninos para trabalhar no fabrico das vendagens e, quando chovia, ainda cultivava um pequeno roçado num pedacinho de terra herdado do marido, nas proximidades da cidade. E, assim, no tempo da colheita, nunca lhe faltava em casa milho, feijão, fava, jerimum... Coisas que se cultivava naquela região.
            Diziam que era tão organizada, econômica e boa comerciante que tinha até dinheiro guardado. E, de fato, depois de um ano bom de chuva, quando teve até de contratar vários trabalhadores para cuidar do roçado e colher o milho e o feijão, resolveu ela usar suas economias para trocar a casa pequena, desconfortável e com boa parte feita em taipa, na rua do motor, por uma casa maior, na rua velha, com mais espaço para os meninos e uma cozinha enorme, ideal para o seu trabalho. Era uma daquelas casas centenárias, muito comum em Mericó, com grandes quartos escuros, corredor, quase, interminável e tão alta que, dividindo-a ao meio, dava para fazer um primeiro andar.
             - Comadre Julieta, a senhora tem coragem de morar naquela casa? Dizem que aparecem umas visagens por lá! Deus me livre!
            - Comadre Maria, eu lá tenho tempo prá me preocupar com visagem! Eu tenho mais o que fazer, comadre!
            Foi a realização de um sonho; morar numa casa tão espaçosa e bem mais perto da clientela. Sua primeira providência ao se mudar foi mandar fazer um bom forno no quintal, passando a produzir cada vez mais.
Mas, não demorou muito e as advertências da comadre começaram a fazer sentido. À noite, ouvia passos pelo corredor e outras estranhezas como portas abrindo-se ou fechando-se. Sentia um arrepio, mas deixava pra lá. O cansaço a dominava, pegava logo no sono e preferia fazer de conta que não estava acontecendo nada, para não assustar os meninos.
Numa véspera de feira, já passava das nove horas da noite, os meninos dormiam enquanto Dona Julieta cochilava escorada na grande e escura mesa da cozinha, peça que, pelo visto, estava ali desde a construção da casa. Esperava uma última tachada de sequilhos que assava no forno, quando teve a atenção chamada por passos vindos do corredor em sua direção.
Eram passos arrastados, como de uma pessoa idosa, e fazia o barulho de uma sandália de cabresto e couro. Sentindo-se arrepiar dos pés à cabeça, levantou a cabeça, olhou para a porta que ligava a cozinha ao corredor, certa de que, em instantes, alguém apareceria ali. Não apareceu. Mas a porta que separava a cozinha do quintal, e que se encontrava apenas encostada devido ao trabalho ainda por fazer, aos poucos foi abrindo-se com o seu tradicional rangido por falta de lubrificação nas dobradiças.
Arrepiada, olhando aquele fato inusitado, Dona Julieta foi somando um misto de medo e raiva: medo, por se tratar de coisa do outro mundo, raiva por vir tirar o seu sossego e atrapalhar o seu sonho, depois de tanto trabalho, tanto sacrifício... A porta lentamente movia-se e ela foi alterando a respiração, e ascendendo as narinas, e tremendo, e suando o buço e ficando cada vez mais vermelha... E, antes que a porte se abrisse completamente, ela, num ímpeto, pulou do tamborete e olhando-a, ainda em movimento, com os olhos arregalados gritou:
- Olhe aqui...! Seja lá quem você for, sua alma penada,  suma minha casa que eu tenho mais o que fazer! E suma já! Senão eu dano-lhe um padre-nosso no rabo que você não acerta nem com a porta da saída!
Dito isso, sentou-se trêmula, esbaforida... A porta bateu violentamente e o silêncio voltou a reinar.
A partir daquela noite, naquela casa, movimento e barulho ainda ouviu-se muito, mas só de gente desse mundo. 

                                                                                                                     Aldenir Dantas

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