COMPADRE TOTA VAI AO CIRCO
Ainda contabilizava-se o apurado da excelente safra de algodão daquele ano, quando Mericó recebeu a primeira visita de um circo que se instalou no largo do mercado, disputando espaço com os feirantes do domingo.
Em meio à paisagem acinzentada daqueles dias, com sua lona listrada, seus pisca-piscas e suas bandeirolas esvoaçantes, o circo constituiu um festival de cores, alegrias e encantamentos, principalmente, para a meninada.
À tardinha, encabeçada por um palhaço equilibrando-se em um monociclo, a trupe saía rua acima rua abaixo divulgando o espetáculo e distribuindo entradas grátis com um carimbo no braço dos meninos que respondessem mais alto ao pregão gritado através de um megafone roufenho:
- Hoje tem espetáculo?
- Tem, sim senhor!
- Às 7 horas da noite?
- Tem sim senhor!
- E o palhaço o que é?
- É ladrão de mulher!
Antoniano, um rapazote de doze anos, assistindo da janela a passagem da alegre trupe, inquietava-se e sentia o coração bater mais forte na ânsia de chegar logo à noite e realizar seu sonho. Se pudesse, misturava-se também à alegre turba, mas a mãe não deixava, pois, para ela, aquilo era coisa de mundiça, de menino sem pai e sem mãe...
Apertando no bolso as cédulas que ganhara por ajudar o avô numa apanha de algodão, só lhe restava lutar contra a eternidade dos minutos até a hora do espetáculo, relembrando o que lhe dissera o tio, homem de pouco estudo, mas muito rodado no mundo:
- Compadre Tota, o melhor do circo, mesmo, é o primeiro dia. O resto é só repetição.
Pode-se estranhar o tratamento de compadre usado por um tio. Mas era isso mesmo: Desde muito pequeno Antoniano aprendera com o pai a mania de chamar todo mundo de compadre ou comadre. Para as pessoas dali, aquilo soava como um gracejo carinhoso e elas respondiam-lhe da mesma forma. E assim, todos em Mericó o chamavam pela alcunha de Tota, precedida do título de compadre.
- E então, compadre Tota, vai ou não vai ver o circo?
- Ora se vou, comadre Jaqueline! Vou ser o primeiro da fila!
- Então, posso passar aqui para a gente ir junto?
- Passe que a gente vai mesmo, comadre!
Jaqueline era uma daquelas vizinhas que, pelos longos anos de convivência e pela afinidade acaba quase virando da família. Para os padrões da época, ela já era uma moça velha. Diziam que, por se achar muito bonita e por ter feito o ginásio na cidade de Cuité, escolheu de mais os pretendentes e acabou naquela situação: já passando dos 24 anos e nada de casamento.
Compadre Tota, por algum tempo, alimentou uma paixão pela vizinha, que também foi sua professora. Mas isso já havia passado e agora a tinha como uma espécie de irmã mais velha sem, todavia, abrir mão de olhar, de vez em quando, com certa atração, para aquelas formas maduras e bem torneadas emolduradas pelos negros e longos cabelos que lhes valeram a alcunha de Perla dos pobres. Obviamente, ninguém ousava chamá-la assim, na sua frente, o máximo que faziam era comentar a sua semelhança com a cantora paraguaia, o que a deixava, discretamente, vaidosa.
Enfim, passaram-se aqueles minutos intermináveis e lá estavam os dois na primeira fila de cadeiras: Compadre Tota e Comadre Jaqueline, coladinhos à borda do picadeiro.
Abriram-se as cortinas, desfilaram os artistas, depois veio um número de palhaços, um de trapezistas, malabaristas, engolidor de fogo... Tudo era sons, cores, emoções e deslumbramento. Antoniano olhava de vez em quando para a amiga com os olhos embaçados de alegria, ela retribuía-lhe o olhar com um sorriso e ele voltava a mergulhar naquele mundo de fantasias e encantamentos.
Mas, entremeando todo aquele deslumbramento, também havia o medo: Medo do trapezista cair sobre ele, do fogo incendiar o circo, do atirador de faca errar o alvo e acertar sua bela assistente...
Havia passado mais de uma hora de espetáculo, quando o silêncio que se seguia aos aplausos foi quebrado por um rufar de tambores e, em seguida, pelo apresentador que, solenemente, anunciou a maior, a mais importante, a mais assustadora, a mais perigosa, a mais, a mais.... A atração que iria fechar com chave de ouro aquele grandioso espetáculo:
- Senhoras e senhores! E agora, diretamente do coração da África selvagem, ele que é o homem mais corajoso do mundo, o único que tem coragem de enfrentar aos mais perigosos e ferozes leões africanos! Com vocês, Mister Rolidey, que hoje irá enfrentar a mais temível de todas as feras africanas!
Antoniano nem havia prestado atenção a um grande caixote que havia bem ao seu lado, coberto por uma lona. Terminada a fala do apresentador, mister Rolidey ainda fazia reverências à platéia quando dois ajudantes, com um puxão brusco e combinado arrancaram de uma só vez a lona protetora do caixote; era a jaula do Leão.
Vendo-se tão perto daquela fera, a ponto de quase sentir-lhe o bafo quente, Antoniano sentiu um frio na espinha dorsal e encolheu-se na cadeira. Sério, com o coração em disparada, segurou a mão de Jaqueline enquanto o domador, entrando na gaiola, fez tudo o que não se deve e, em tese, não se pode fazer com um Leão. Ora acariciava-lhe a juba fazendo-o cochilar, ora irritava-o fazendo rugir, mostrar as presas e erguer as patas como se fosse devorá-lo.
O medo do leão já havia diminuído quando, de súbito, as luzes se apagaram, ouviu-se um novo rufar de tambores e um arco de fogo, suspenso no meio da jaula, passou a concentrar a atenção do público. Com um gesto teatral, o domador fez estalar três vezes um chicote que trazia na mão e o leão, tal qual cachorro desconfiado, caminhou cabisbaixo para a extremidade posterior da jaula de onde olhava, ora para o círculo de fogo, ora para o público, especialmente Para Antoniano, por estar bem a sua frente.
Não demorou muito e Mister Rolidey, em mais um gesto ensaiado estufou o peito, ergueu o chicote e olhando para o Leão com a pose de um toureiro espanhol, fez estalar bem alto o chicote e gritou:
- Olé!
Num piscar de olhos, Antoniano viu aquela enorme fera lançar-se no ar, atravessar o círculo de fogo e voar de boca e patas abertas na sua direção. Fechou os olhos, encolheu-se todo e esperou o desfecho fatal daqueles segundos de terror.
Os aplausos ecoaram de todos os lados. Abriu os olhos; as luzes estavam acesas e o domador curvava-se diante do público. O leão estava quieto em um canto da jaula e, ele continuava vivo e ileso.
Todos levantaram-se para sair, Jaqueline levantou-se, mas ele permaneceu sentado, desfigurado, com gotículas de suor espalhadas pelo rosto.
- Compadre Tota, foi bom, mas acabou. Agora, vamos embora.
Fingindo ignorar o que dizia a amiga, manteve a cabeça baixa e o olhar fixo no leão.
Impaciente com a demora, Jaqueline tocou no seu ombro, deu-lhe uma leve sacudidela e voltou a falar-lhe, com mais energia:
- Vamos embora, compadre Tota!
Ele, lentamente ergueu o rosto em sua direção e quando seus olhos cruzaram-se havia em seu olhar um misto de súplica, tristeza, vergonha, desespero... Ela sentiu uma pontada no coração; então, curvou-se, acariciou seu cabelo e, com um olhar perscrutador, tentou descobrir o que se passava com o jovem amigo.
- Compadre Tota?...
- Comadre Jaqueline... Começou falar, mas teve de fazer uma pausa para desatar o nó da garganta e segurar umas lágrimas que ameaçavam inundar-lhe os olhos.
- Fale compadre! O que está havendo, pelo amor de Deus?
- Estou todo obrado, comadre.
Aldenir Dantas
Aldenir Dantas
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