Quem sou eu

Mericó é uma pequenina cidade atemporal, fora dos mapas, dos livros e das estatísticas do IBGE, que vem atravessando os séculos. Hoje, por necessidade, ela se permite ser tocada por mãos estranhas, desde que estas mãos cuidem para que não morram as suas tradições, as suas histórias e, sobretudo, a memória da sua gente humilde e pacata. Assim fazendo, acredita que está contribuindo para a memória de todas as cidades que são ou, um dia, foram iguais a ela. Se você tem alguma alguma memória que possa contribuir nesse sentido, colabore. São coisas simples, assim como "Tomar Q-suco de morango gelado em uma garrafa de laranjada, com pão doce, na bodega da esquina..."

25 de junho de 2011

COMPADRE TOTA VAI AO CIRCO


        Ainda contabilizava-se o apurado da excelente safra de algodão daquele ano, quando Mericó recebeu a primeira visita de um circo que se instalou no largo do mercado, disputando espaço com os feirantes do domingo.
Em meio à paisagem acinzentada daqueles dias, com sua lona listrada, seus pisca-piscas e suas bandeirolas esvoaçantes, o circo constituiu um festival de cores, alegrias e encantamentos, principalmente, para a meninada.
        À tardinha, encabeçada por um palhaço equilibrando-se em um monociclo, a trupe saía rua acima rua abaixo divulgando o espetáculo e distribuindo entradas grátis com um carimbo no braço dos meninos que respondessem mais alto ao pregão gritado através de um megafone roufenho:
        - Hoje tem espetáculo?
        - Tem, sim senhor!
        - Às 7 horas da noite?
        - Tem sim senhor!
        - E o palhaço o que é?
        - É ladrão de mulher!
        Antoniano, um rapazote de doze anos, assistindo da janela a passagem da alegre trupe, inquietava-se e sentia o coração bater mais forte na ânsia de chegar logo à noite e realizar seu sonho. Se pudesse, misturava-se também à alegre turba, mas a mãe não deixava, pois, para ela, aquilo era coisa de mundiça, de menino sem pai e sem mãe...
Apertando no bolso as cédulas que ganhara por ajudar o avô numa apanha de algodão, só lhe restava lutar contra a eternidade dos minutos até a hora do espetáculo, relembrando o que lhe dissera o tio, homem de pouco estudo, mas muito rodado no mundo:
- Compadre Tota, o melhor do circo, mesmo, é o primeiro dia. O resto é só repetição.
Pode-se estranhar o tratamento de compadre usado por um tio. Mas era isso mesmo: Desde muito pequeno Antoniano aprendera com o pai a mania de chamar todo mundo de compadre ou comadre. Para as pessoas dali, aquilo soava como um gracejo carinhoso e elas respondiam-lhe da mesma forma. E assim, todos em Mericó o chamavam pela alcunha de Tota, precedida do título de compadre.

- E então, compadre Tota, vai ou não vai ver o circo?
- Ora se vou, comadre Jaqueline! Vou ser o primeiro da fila!
- Então, posso passar aqui para a gente ir junto?
- Passe que a gente vai mesmo, comadre!

Jaqueline era uma daquelas vizinhas que, pelos longos anos de convivência e pela afinidade acaba quase virando da família. Para os padrões da época, ela já era uma moça velha. Diziam que, por se achar muito bonita e por ter feito o ginásio na cidade de Cuité, escolheu de mais os pretendentes e acabou naquela situação: já passando dos 24 anos e nada de casamento.
Compadre Tota, por algum tempo, alimentou uma paixão pela vizinha, que também foi sua professora.  Mas isso já havia passado e agora a tinha como uma espécie de irmã mais velha sem, todavia, abrir mão de olhar, de vez em quando, com certa atração, para aquelas formas maduras e bem torneadas emolduradas pelos negros e longos cabelos que lhes valeram a alcunha de Perla dos pobres. Obviamente, ninguém ousava chamá-la assim, na sua frente, o máximo que faziam era comentar a sua semelhança com a cantora paraguaia, o que a deixava, discretamente, vaidosa.
Enfim, passaram-se aqueles minutos intermináveis e lá estavam os dois na primeira fila de cadeiras: Compadre Tota e Comadre Jaqueline, coladinhos à borda do picadeiro.
 Abriram-se as cortinas, desfilaram os artistas, depois veio um número de palhaços, um de trapezistas, malabaristas, engolidor de fogo... Tudo era sons, cores, emoções e deslumbramento. Antoniano olhava de vez em quando para a amiga com os olhos embaçados de alegria, ela retribuía-lhe o olhar com um sorriso e ele voltava a mergulhar naquele mundo de fantasias e encantamentos.
Mas, entremeando todo aquele deslumbramento, também havia o medo: Medo do trapezista cair sobre ele, do fogo incendiar o circo, do atirador de faca errar o alvo e acertar sua bela assistente...
Havia passado mais de uma hora de espetáculo, quando o silêncio que se seguia aos aplausos foi quebrado por um rufar de tambores e, em seguida,  pelo apresentador que, solenemente, anunciou a maior, a mais importante, a mais assustadora, a mais perigosa, a mais, a mais.... A atração que iria fechar com chave de ouro aquele grandioso espetáculo:
- Senhoras e senhores! E agora, diretamente do coração da África selvagem, ele que é o homem mais corajoso do mundo, o único que tem coragem de enfrentar aos mais perigosos e ferozes leões africanos! Com vocês, Mister Rolidey, que hoje irá enfrentar a mais temível de todas as feras africanas!
Antoniano nem havia prestado atenção a um grande caixote que havia bem ao seu lado, coberto por uma lona. Terminada a fala do apresentador, mister Rolidey ainda fazia reverências à platéia quando dois ajudantes, com um puxão brusco e combinado arrancaram de uma só vez a lona protetora do caixote; era a jaula do Leão.
Vendo-se tão perto daquela fera, a ponto de quase sentir-lhe o bafo quente, Antoniano sentiu um frio na espinha dorsal e encolheu-se na cadeira.  Sério, com o coração em disparada, segurou a mão de Jaqueline enquanto o domador, entrando na gaiola, fez tudo o que não se deve e, em tese, não se pode fazer com um Leão. Ora acariciava-lhe a juba fazendo-o cochilar, ora irritava-o fazendo rugir, mostrar as presas e erguer as patas como se fosse devorá-lo.
O medo do leão já havia diminuído quando, de súbito, as luzes se apagaram, ouviu-se um novo rufar de tambores e um arco de fogo, suspenso no meio da jaula, passou a concentrar a atenção do público. Com um gesto teatral, o domador fez estalar três vezes um chicote que trazia na mão e o leão, tal qual cachorro desconfiado, caminhou cabisbaixo para a extremidade posterior da jaula de onde olhava, ora para o círculo de fogo, ora para o público, especialmente Para Antoniano, por estar bem a sua frente.
Não demorou muito e Mister Rolidey, em mais um gesto ensaiado estufou o peito, ergueu o chicote e olhando para o Leão com a pose de um toureiro espanhol, fez estalar bem alto o chicote e gritou:
- Olé!
Num piscar de olhos, Antoniano viu aquela enorme fera lançar-se no ar, atravessar o círculo de fogo e voar de boca e patas abertas na sua direção. Fechou os olhos, encolheu-se todo e esperou o desfecho fatal daqueles segundos de terror.
Os aplausos ecoaram de todos os lados. Abriu os olhos; as luzes estavam acesas e o domador curvava-se diante do público. O leão estava quieto em um canto da jaula e, ele continuava vivo e ileso.
Todos levantaram-se para sair, Jaqueline levantou-se, mas ele permaneceu sentado, desfigurado, com gotículas de suor espalhadas pelo rosto.
 - Compadre Tota, foi bom, mas acabou. Agora, vamos embora.
Fingindo ignorar o que dizia a amiga, manteve a cabeça baixa e o olhar fixo no leão.
Impaciente com a demora, Jaqueline tocou no seu ombro, deu-lhe uma leve sacudidela e voltou a falar-lhe, com mais energia:
- Vamos embora, compadre Tota!
Ele, lentamente ergueu o rosto em sua direção e quando seus olhos cruzaram-se havia em seu olhar um misto de súplica, tristeza, vergonha, desespero... Ela sentiu uma pontada no coração; então, curvou-se, acariciou seu cabelo e, com um olhar perscrutador, tentou descobrir o que se passava com o jovem amigo.
-  Compadre Tota?...
- Comadre Jaqueline... Começou falar, mas teve de fazer uma pausa para desatar o nó da garganta e segurar umas lágrimas que ameaçavam inundar-lhe os olhos.
- Fale compadre! O que está havendo, pelo amor de Deus?
- Estou todo obrado, comadre.
                            
                                                                              Aldenir Dantas

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